"Vai cair a educação de Pinochet!". Com essas palavras, centenas de milhares de chilenos foram às ruas para pedir o fim do modelo de educação no qual tudo é pago. Querem um ensino público, gratuito e de qualidade. Bem avaliado em testes internacionais, o sistema educacional está em xeque. Quando foi imposto pela ditadura pinochetista, nos anos 1980, a propaganda oficial dizia que estudantes, ao pagarem pelo ensino, seriam transformados em clientes. A competição melhoraria a educação, ampliaria a cobertura e soterraria protestos. Trinta anos depois, os clientes resolveram se rebelar. Pagam caro por um ensino de qualidade discutível. As famílias sentem o torniquete do modelo no emaranhado de bolsas, mensalidades, juros, bancos. Mario Waissbluth, coordenador nacional do movimento Educação 2020, afirma que 40% dos que ingressam na universidade saem antes de concluir. Dos 60% que se titulam, a metade fica desempregada ou consegue um emprego ruim. Mas continuarão com uma dívida por 20 ou 30 anos. Só 30% (os mais ricos) conseguem o prometido pelo modelo. FALSA PROMESSA Nos últimos dez anos, o Chile passou de 300 mil a 1,1 milhão de universitários. "Mas 700 mil se deram conta da falsa promessa. Some a isso os seus familiares e teremos de 2 milhões a 3 milhões de enganados pelo comércio universitário", avalia Waiss-bluth, professor de engenharia industrial da Universidade do Chile. Ignacio Sánchez Dias, reitor da Universidade Católica, observa que nos últimos 30 anos se multiplicou por seis o número de estudantes em faculdades: "Setenta por cento deles são os primeiros em suas famílias que chegam ao ensino superior". Apesar da expansão, a percentagem da população chilena matriculada hoje em todos os níveis (26%) é inferior à existente antes do golpe de 1973 (30%), nota o sociólogo Francisco Durán Del Fierro, do Centro de Estudos Nacionais de Desenvolvimento Alternativo. Waissbluth afirma que as famílias arcam com 80% dos custos de um ensino "totalmente desregulado e sem transparência". Das 4.700 carreiras oferecidas, apenas 700 têm reconhecimento certificado. "É um dos modelos mais pró-mercado do planeta. Qualquer um pode abrir uma instituição com subsídio do Estado, sem requisitos de qualidade, e atuar com mínimas restrições", conta. "Não foi liberdade, mas libertinagem de mercado", opina. "A cobertura da educação pública caiu de 80% para 37% em 30 anos e segue caindo vertiginosamente". ALÍVIO O palácio de La Moneda reconhece o problema, que já derrubou a popularidade do presidente Sebastián Piñera. Andrés Chadwick, secretário-geral de governo, diz que é preciso "produzir um alívio para a família chilena". Primo do presidente, foi líder estudantil na ditadura e discípulo do ultradireitista Jaime Guzmán, um dos principais ideólogos do pinochetismo. A imagem do país preocupa Chadwick. "Queremos que os investidores externos possam continuar reconhecendo o Chile como um país com estabilidade", afirma. Para ele, a turbulência é uma crise de crescimento, não um sintoma de fracasso do modelo neoliberal, como advoga a oposição. O governo acena com queda nos juros para as dívidas estudantis, controle sobre as entidades privadas e implantação de uma agência para cobrar qualidade. Na visão do ministro, a gratuidade na educação não é boa porque: 1) é justo que os que têm condições paguem; e 2) produz hiperdemanda por educação superior, que resulta em queda dos egressos. Mas admite fazer mudanças graduais para chegar, no longo prazo, até 60% de gratuidade no ensino. Hoje não há ensino gratuito no Chile. Até 1964, um terço da população em idade escolar não ia à escola. O governo democrata-cristão de Eduardo Frei Montalva iniciou uma reforma estrutural na educação. GOLPE Em seguida, Salvador Allende (1908-73) elaborou um plano que visava construir um modelo educacional de transição para o socialismo. Da sua posse, em 1970, até o golpe de 1973, praticamente dobrou o número de universitários chilenos. Existiam então oito universidades no Chile; hoje são 68. A mais importante era a Universidade do Chile, fundada em 1842. Todas recebiam aportes do Estado. O ensino era basicamente gratuito. O golpe estraçalhou a estrutura de ensino, interveio nas universidades e desencadeou uma repressão sem precedentes. A verba para a educação pública minguou, e o governo empurrou as escolas para o caminho do autofinanciamento. Em 1981, depois de exterminar centenas de oposicionistas e desmantelar sindicatos e associações, o ditador Pinochet (1915-2006) organizou leis de "modernização", incorporando as ideias neoliberais dos economistas de Chicago. Na saúde, na previdência e na educação, tudo passou a ser privatizado. Professora de jornalismo da Universidade do Chile, María Olívia Mönckeberg relata os bastidores desse processo em "La Privatización de las Universidades, una Historia de Dinero, Poder e Influencias" (Copa Rota, 2005). Segundo ela, a crise econômica em 1982, de início, desencorajou os grupos econômicos que já estavam em outras áreas privatizadas a entrar no setor de universidades. A situação mudou até o final da década. "Deram autorizações muito rápidas para novas universidades privadas. A maioria das que existem hoje e lucram são dessa época e, por isso, estão nas mãos de pessoas da direita", afirma. Guilhermo Scherping, diretor do Colégio de Professores (sindicato), recorda: "Surgiram 18 universidades só de 1º de janeiro a 10 de março de 1990" (véspera da saída de Pinochet). NEOLIBERALISMO O muro de Berlim caíra, e o neoliberalismo não tinha muitos contestadores. Assim, a coalizão de centro-esquerda que chegou ao poder praticamente não tocou no arcabouço econômico, jurídico e social da ditadura, analisa Mönckeberg. O modelo se aprofundou, com escolas lucrando com o recebimento de dinheiro público e isenções fiscais. A lei de Pinochet, que curiosamente proibia o lucro, passou a ser burlada. Por exemplo, por contratos das instituições privadas com imobiliárias do mesmo grupo a que pertencem, que cobram aluguéis das escolas. A professora faz uma radiografia desse mercado em "El Negocio de las Universidades en Chile" (Random House Mondadori, 2007), mostrando conexões entre membros de governos, donos de escolas e bancos. "Conflitos de interesses existem na sociedade moderna, salvo nos conventos", diz o ministro Chadwick. Quanto a integrantes do governo vinculados ao mercado de ensino, afirma que eles não participam da tomada de decisões sobre o tema. Todos os grupos políticos, diz ele, têm representantes no lucrativo mercado educacional. Os resultados do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) mostram o Chile na frente na América Latina: primeiro em ciências e leitura. Apesar disso, 40% dos que saem do ensino médio não entendem o que leem nem realizam operações aritméticas básicas, afirma Waissbluth. SEGREGAÇÃO Outra crítica é quanto à segregação social do modelo. Há escolas onde só ricos estudam e outras onde há só pobres. É "um verdadeiro apartheid educativo", diz ele. Ou "guetos educacionais", como define o líder estudantil Giorgio Jackson, para quem o ensino não pode ser visto como uma mercadoria descartável. As manifestações trouxeram para o debate a reforma tributária, a renacionalização da mineração do cobre (para financiamento da educação pública) e o sistema político binomial. "São conflitos latentes na nossa cidadania", diz Jaime Gajardo, presidente nacional do Colégio de Professores. Sobre o debate institucional, Chadwick rebate: "Nossa democracia é completa. Podemos debater o sistema eleitoral. Que democracia perfeita existe?". Algo vai mudar na educação chilena. O alcance da mudança será decidido nas mesas de negociação e nas ruas. Não se sabe se o movimento terá reflexo eleitoral nem se vai atingir outras áreas privatizadas por Pinochet. O lucro no sistema de saúde, por exemplo, começa a entrar na pauta política. Nas últimas eleições, 3 milhões de jovens não votaram (de um total de 7 milhões). Do palácio de La Moneda às ruas, a pergunta é: quantos desses jovens estarão dispostos a mudar o quadro pelas urnas?
segunda-feira, 3 de outubro de 2011
Ensino na mira dos estudantes chilenos Publicidade ELEONORA DE LUCENA ENVIADA ESPECIAL A SANTIAGO
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