segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Ensino na mira dos estudantes chilenos Publicidade ELEONORA DE LUCENA ENVIADA ESPECIAL A SANTIAGO

"Vai cair a educação de Pinochet!". Com essas palavras, centenas de
milhares de chilenos foram às ruas para pedir o fim do modelo de
educação no qual tudo é pago. Querem um ensino público, gratuito e de
qualidade. Bem avaliado em testes internacionais, o sistema
educacional está em xeque.
 
Quando foi imposto pela ditadura pinochetista, nos anos 1980, a
propaganda oficial dizia que estudantes, ao pagarem pelo ensino,
seriam transformados em clientes. A competição melhoraria a educação,
ampliaria a cobertura e soterraria protestos. Trinta anos depois, os
clientes resolveram se rebelar. Pagam caro por um ensino de qualidade
discutível. As famílias sentem o torniquete do modelo no emaranhado de
bolsas, mensalidades, juros, bancos.
 
Mario Waissbluth, coordenador nacional do movimento Educação 2020,
afirma que 40% dos que ingressam na universidade saem antes de
concluir. Dos 60% que se titulam, a metade fica desempregada ou
consegue um emprego ruim. Mas continuarão com uma dívida por 20 ou 30
anos. Só 30% (os mais ricos) conseguem o prometido pelo modelo.
 
FALSA PROMESSA
Nos últimos dez anos, o Chile passou de 300 mil a 1,1 milhão de
universitários. "Mas 700 mil se deram conta da falsa promessa. Some a
isso os seus familiares e teremos de 2 milhões a 3 milhões de
enganados pelo comércio universitário", avalia Waiss-bluth, professor
de engenharia industrial da Universidade do Chile.
 
Ignacio Sánchez Dias, reitor da Universidade Católica, observa que nos
últimos 30 anos se multiplicou por seis o número de estudantes em
faculdades: "Setenta por cento deles são os primeiros em suas famílias
que chegam ao ensino superior".
 
Apesar da expansão, a percentagem da população chilena matriculada
hoje em todos os níveis (26%) é inferior à existente antes do golpe de
1973 (30%), nota o sociólogo Francisco Durán Del Fierro, do Centro de
Estudos Nacionais de Desenvolvimento Alternativo.
 
Waissbluth afirma que as famílias arcam com 80% dos custos de um
ensino "totalmente desregulado e sem transparência". Das 4.700
carreiras oferecidas, apenas 700 têm reconhecimento certificado. "É um
dos modelos mais pró-mercado do planeta. Qualquer um pode abrir uma
instituição com subsídio do Estado, sem requisitos de qualidade, e
atuar com mínimas restrições", conta.
 
"Não foi liberdade, mas libertinagem de mercado", opina. "A cobertura
da educação pública caiu de 80% para 37% em 30 anos e segue caindo
vertiginosamente".
 
ALÍVIO
O palácio de La Moneda reconhece o problema, que já derrubou a
popularidade do presidente Sebastián Piñera. Andrés Chadwick,
secretário-geral de governo, diz que é preciso "produzir um alívio
para a família chilena". Primo do presidente, foi líder estudantil na
ditadura e discípulo do ultradireitista Jaime Guzmán, um dos
principais ideólogos do pinochetismo.
 
A imagem do país preocupa Chadwick. "Queremos que os investidores
externos possam continuar reconhecendo o Chile como um país com
estabilidade", afirma. Para ele, a turbulência é uma crise de
crescimento, não um sintoma de fracasso do modelo neoliberal, como
advoga a oposição.
 
O governo acena com queda nos juros para as dívidas estudantis,
controle sobre as entidades privadas e implantação de uma agência para
cobrar qualidade. Na visão do ministro, a gratuidade na educação não é
boa porque: 1) é justo que os que têm condições paguem; e 2) produz
hiperdemanda por educação superior, que resulta em queda dos egressos.
 
Mas admite fazer mudanças graduais para chegar, no longo prazo, até
60% de gratuidade no ensino. Hoje não há ensino gratuito no Chile. Até
1964, um terço da população em idade escolar não ia à escola. O
governo democrata-cristão de Eduardo Frei Montalva iniciou uma reforma
estrutural na educação.
 
GOLPE
Em seguida, Salvador Allende (1908-73) elaborou um plano que visava
construir um modelo educacional de transição para o socialismo. Da sua
posse, em 1970, até o golpe de 1973, praticamente dobrou o número de
universitários chilenos. Existiam então oito universidades no Chile;
hoje são 68. A mais importante era a Universidade do Chile, fundada em
1842. Todas recebiam aportes do Estado. O ensino era basicamente
gratuito.
 
O golpe estraçalhou a estrutura de ensino, interveio nas universidades
e desencadeou uma repressão sem precedentes. A verba para a educação
pública minguou, e o governo empurrou as escolas para o caminho do
autofinanciamento.
 
Em 1981, depois de exterminar centenas de oposicionistas e desmantelar
sindicatos e associações, o ditador Pinochet (1915-2006) organizou
leis de "modernização", incorporando as ideias neoliberais dos
economistas de Chicago. Na saúde, na previdência e na educação, tudo
passou a ser privatizado.
 
Professora de jornalismo da Universidade do Chile, María Olívia
Mönckeberg relata os bastidores desse processo em "La Privatización de
las Universidades, una Historia de Dinero, Poder e Influencias" (Copa
Rota, 2005). Segundo ela, a crise econômica em 1982, de início,
desencorajou os grupos econômicos que já estavam em outras áreas
privatizadas a entrar no setor de universidades.
 
A situação mudou até o final da década. "Deram autorizações muito
rápidas para novas universidades privadas. A maioria das que existem
hoje e lucram são dessa época e, por isso, estão nas mãos de pessoas
da direita", afirma.
 
Guilhermo Scherping, diretor do Colégio de Professores (sindicato),
recorda: "Surgiram 18 universidades só de 1º de janeiro a 10 de março
de 1990" (véspera da saída de Pinochet).
 
NEOLIBERALISMO
O muro de Berlim caíra, e o neoliberalismo não tinha muitos
contestadores. Assim, a coalizão de centro-esquerda que chegou ao
poder praticamente não tocou no arcabouço econômico, jurídico e social
da ditadura, analisa Mönckeberg.
 
O modelo se aprofundou, com escolas lucrando com o recebimento de
dinheiro público e isenções fiscais. A lei de Pinochet, que
curiosamente proibia o lucro, passou a ser burlada. Por exemplo, por
contratos das instituições privadas com imobiliárias do mesmo grupo a
que pertencem, que cobram aluguéis das escolas. A professora faz uma
radiografia desse mercado em "El Negocio de las Universidades en
Chile" (Random House Mondadori, 2007), mostrando conexões entre
membros de governos, donos de escolas e bancos.
 
"Conflitos de interesses existem na sociedade moderna, salvo nos
conventos", diz o ministro Chadwick. Quanto a integrantes do governo
vinculados ao mercado de ensino, afirma que eles não participam da
tomada de decisões sobre o tema. Todos os grupos políticos, diz ele,
têm representantes no lucrativo mercado educacional.
 
Os resultados do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos)
mostram o Chile na frente na América Latina: primeiro em ciências e
leitura. Apesar disso, 40% dos que saem do ensino médio não entendem o
que leem nem realizam operações aritméticas básicas, afirma
Waissbluth.
 
SEGREGAÇÃO
Outra crítica é quanto à segregação social do modelo. Há escolas onde
só ricos estudam e outras onde há só pobres. É "um verdadeiro
apartheid educativo", diz ele. Ou "guetos educacionais", como define o
líder estudantil Giorgio Jackson, para quem o ensino não pode ser
visto como uma mercadoria descartável.
 
As manifestações trouxeram para o debate a reforma tributária, a
renacionalização da mineração do cobre (para financiamento da educação
pública) e o sistema político binomial. "São conflitos latentes na
nossa cidadania", diz Jaime Gajardo, presidente nacional do Colégio de
Professores.
 
Sobre o debate institucional, Chadwick rebate: "Nossa democracia é
completa. Podemos debater o sistema eleitoral. Que democracia perfeita
existe?".
 
Algo vai mudar na educação chilena. O alcance da mudança será decidido
nas mesas de negociação e nas ruas. Não se sabe se o movimento terá
reflexo eleitoral nem se vai atingir outras áreas privatizadas por
Pinochet. O lucro no sistema de saúde, por exemplo, começa a entrar na
pauta política.
 
Nas últimas eleições, 3 milhões de jovens não votaram (de um total de
7 milhões). Do palácio de La Moneda às ruas, a pergunta é: quantos
desses jovens estarão dispostos a mudar o quadro pelas urnas?

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